sábado, 3 de abril de 2010

A vida continua...

Serra d'Água e Ribeira da Tabua ainda sofrem mas recuperação está no terreno e pessoas tentam superar





A um ritmo frenético, as máquinas e os homens trabalham na Serra d'Água para repor a normalidade. A estrada provisória, construída no leito da ribeira, com o aproveitamento dos inertes que correram montanha abaixo, veio dar novo ânimo à população e aos comerciantes. Estes últimos tiveram dias «muito parados» e, com a abertura da via, a clientela começava a regressar. Entretanto, a população assiste aos trabalhos em curso enquanto limpa as suas casas.


Um dia de sol, com flores a brotarem das árvores. A Primavera chegava com a sua alegria, com vontade de animar o estado de espírito das pessoas. Ali, na Serra d'Água, o dia era de trabalho, como aliás, têm sido todos os que sucederam ao 20 de Fevereiro. Já com um acesso viário em funcionamento, que aproveitou as pedras que rolaram das montanhas para se estabelecer provisoriamente, enquanto os trabalhadores das obras estão no terreno a resolver os problemas da estrada principal e saneamento básico, aquela freguesia tenta regressar à normalidade.
A estrada que que foi aberta já motivou, no passado fim-de-semana, “excursões” de pessoas até à freguesia “da Poncha”, muitas por curiosidade para ver o que está a ser feito após a destruição e tantas outras para ajudarem o comércio a se restabelecer, através do consumo da famosa bebida, entre outras.
A população assiste à evolução dos trabalhos em curso, ouve constantemente o barulho das máquinas. Há muito por fazer e não há mãos a medir. Com um cenário cinzento à frente de casa, Maria Lurdes Gouveia olhava para as obras que decorriam. «Tem sido sempre assim», diz-nos. A sua casa já está limpa dos entulhos, com a ajuda de maquinarias. Depois de ter passado os primeiros oito dias após o temporal em casa de família, esta senhora regressou ao seu lar. Consciente de que o susto que sofreu vai acompanhá-la para sempre, Maria Lurdes diz, no entanto, que tem esperanças na recuperação da sua freguesia. Lamenta a perda de casas que ali existiam, das suas fazendas e também a este respeito, diz-se esperançada que a Câmara Municipal resolva o problema dos agricultores da Serra d'Água que viram os seus terrenos serem roubados pelos pedregulhos.
Mais acima, perto da escola, da Junta de Freguesia e do Centro de Saúde da Serra d'Água, a normalidade vai entrando pelo comércio adentro. No estabelecimento “Poncha Paulinos”, houve perda de clientes habituais, de pessoas que ainda não regressaram às suas casas. Contudo, têm aparecido pessoas de fora da freguesia, curiosas para ver as estradas. Os trabalhadores das obras também ajudam a compensar, como nos foi referido. Também na “Tasquinha da Poncha”, os «homens das obras» têm sido uma ajuda ao negócio, porque vão tomar um café na hora do almoço, ou outra bebida no final do trabalho. Depois de um mês magro, os comerciantes esperam que a clientela regresse. A recuperação da estrada e, naquele lado em concreto, a abertura da ponte, que aconteceu no último dia 23 de Março, trouxe novo ânimo, porque veio permitir a passagem de carros pelos dois lados. Naquela zona, está também restabelecida a passagem de autocarros.
Teresa Gabriela Jesus vive numa casa acima da ponte. No dia do temporal e dias seguintes, acolheu na sua casa cerca de dez pessoas, para além da sua família. Diz que, com a ponte reconstruída, «está muito mais confortável» viver ali e tentar fazer uma vida normal. Aguardava, no dia da nossa reportagem, pelo restabelecimento da luz pública. Nas casas havia electricidade, mas nas ruas ainda não tinha possível recuperar, pelo menos na zona onde vive. «Mas as coisas estão muito melhores», sublinha.
Outra paragem da nossa reportagem foi na Ribeira da Tabua, cujo acesso está restabelecido. Contudo, e como é estreito e de dois sentidos, há pessoas com medo de conduzir por ali, como nos disse a proprietária de um café, que se queixava do negócio estar fraco. Mas, esclarece, a abertura da via foi muito positivo para aquele sítio, que voltou a estar «próximo» da Ribeira Brava.
Na descida da ribeira da Tabua, uma senhora aproveitava o calor que se fazia sentir para terminar as limpezas dos seus terrenos e de revolver a terra. É tempo de voltar a plantar semilhas, disse-nos. A vida continua.


Vinháticos e Encumeada recuperam clientes
Ocupação nas pousadas começa a crescer


A Pousada dos Vinháticos e a Pousada da Encumeada começam a sentir o regresso à normalidade. Na primeira, e apesar de a taxa de ocupação em Março ser, normalmente, de 70 por cento, na semana de iniciada no dia 22, segunda-feira, estava nos 50 por cento. As duas primeiras semanas após o temporal foram difíceis para esta pousada que se viu sem estrada de acesso automóvel. Por isso, houve cancelamentos de reservas. Um mês depois, «as reservas já começam a aparecer e estamos com uma ocupação de 50 por cento graças a promoções e a reservas de última hora», disse-nos o recepcionista. Os turistas, alemãs e franceses, principalmente, começam a regressar ao norte e demonstram curiosidade sobre o que aconteceu e como as pessoas estão a reagir e a sobreviver.
Na Pousada da Encumeada, estavam, na semana de 22 de Março, hospedadas 30 pessoas. Nesta altura do ano, o habitual são 50. «Pouco a pouco, estamos a voltar à normalidade», garantiram-nos.
Em São Vicente, os estabelecimentos na marginal estavam com algumas mesas ocupadas. E, segundo nos disseram num restaurante, aquele era um dia calmo. Aquele concelho tem recebido diversos visitantes, com a ajuda da estrada provisória na Serra d'Água e do bom tempo.
Na Ribeira Brava, outro lugar de passagem, «se não fosse pela ponte que ruiu, mas que também já abriu, não se dizia que tinha havido temporal», disse-nos um comerciante do centro da vila. Ali, esplanadas e a rua estavam com várias pessoas, entre as quais muitos turistas. A normalidade também se fazia sentir pelo grupo de homens que jogavam ao dominó nos bancos resguardados da marginal. O dia de sol assim o propiciava. O bar da praia da Ribeira Brava estava aberto, apesar de aquela zona não estar ainda totalmente recuperada do temporal. Na Ponta de Sol, turistas e residentes aproveitavam o calor para ocupar a esplanada da marginal ou, simplesmente, para estarem sentados nos bancos, a desfrutar do mar e do sol.


Vive «sozinha, com Deus e os bichinhos” mas no dia 20 de Fevereiro:
Casa de Felismina recebeu 28 «pessoas assustadas»


Felismina Correia Pita vive «com Deus e os meus bichinhos». E adora conversar. Não estranhou a presença do JM nas suas terras. Encontrou-nos quando ia dar de comer às suas «cabrinhas» e, como sente muitas dores nas costas e nos joelhos, «a ajuda veio a calhar» no transporte dos sacos. Fomos ao seu encontro com o objectivo de ouvir da sua boca, aquilo que várias pessoas já tinham comentado: uma senhora com uma casa cor-de-rosa na montanha acolheu 28 pessoas no dia do temporal. Antes, tínhamos falado com Maria Lurdes Gouveia, uma das pessoas que se abrigou na casa da vizinha, depois de ter visto as pedras a rolarem ribeira abaixo, atingindo a churrascaria da sua casa.
Subimos a encosta, com o cenário cinzento das pedras a ilustrar a ribeira e estrada, mas com o verde das nossas montanhas a persistir na paisagem.
Felismina Pita sentou-se num dos muros que protegiam os degraus do seu terreno. «A ribeira estava a descer lá de cima, as pessoas fugiram para aqui senão morriam. Eram cerca de 30 pessoas. Recebi até gente do Funchal, que estava na Serra d'Água». Lembra-se, por exemplo, de «uma família com um bebezinho de dois meses. Estavam todos molhadinhos, coitados». A roupa que tinha em casa foi distribuída pelas pessoas que iam chegando.
«As pessoas estavam muito assustadas. A ribeira estava a comer as casas todas. Nunca me lembro de coisa igual..», conta com uma mão no rosto. O grupo ficou de sábado para domingo. Como não tinha «comida para esta gente toda, os homens foram à lenha» e algumas pessoas foram às suas casas buscar coisas para cozinhar. «Ajudamo-nos uns aos outros», sublinhou. «Eu falo com esta gente toda daqui». Entretanto as pessoas que não conhecia, do Funchal, têm entrado em contacto com esta «heroína». Segundo nos contou, já lhe levaram «leite, mel e outras coisas» de oferta, como sinal de agradecimento.
Com um problema nas costas que a obriga a andar curvada, Felismina Pita explica que, quando era criança, «tinha ido deitar água ao inhame e caí de costas. Como tinha medo de ir para o hospital, disse ao meu pai que não tinha doído, mas doeu muito. Fiquei com a coluna encravada já em pequena». O médico diz-lhe para não pegar em peso. «Mas ando sempre com carga. Tenho de tratar dos meus bichinhos».
Com a casa resguardada da tragédia e até do cenário que não deixa esquecer o dia 20 de Fevereiro, Felismina Pita gosta de viver na montanha. «Mesmo depois do temporal, gosto de viver aqui. Não sinto medo de nada porque tenho ali um cão grande que ladra e que é boa companhia».
Depois de cerca de vinte minutos de conversa, despedimo-nos. Conversadora, lamentou-se: «ah, já vão? Fiquem mais um bocadinho». Não podíamos. O trabalho mandava-nos para outros lugares.


Albertina Silva está temporariamente numa casa da IHM
Recuperar a casa para receber familiares

Após ter vivido durante três semanas no RG3, no Funchal, Albertina Silva está actualmente a viver numa casa cedida pela empresa Investimentos Habitacionais da Madeira, no Caminho da Terra Grande, Serra D'Água. Encontrámo-la na sua própria casa, em limpezas. Apesar da maior parte das pedras ter sido já removida, um pedregulho estava ainda a bloquear a entrada principal. Perdeu muitos dos seus bens e, embora demonstre a sua gratidão pela ajuda que tem tido por parte do Governo, não sabe como vai ser regressar definitivamente ao seu lar. «O meu sítio era verde, agora é de pedra e dói olhar para isto», comenta. A ser acompanhada por uma psicóloga, Albertina Silva estava a ter a ajuda de familiares nesta fase de limpezas. Vive na casa com um filho e com o seu irmão, mas a habitação é da família. Com quatro quartos de dormir, cozinha, casa de banho e sala de jantar, a casa recebe os seus irmãos quando estes a visitam do continente. Por isso, quer recuperar a sua habitação, embora admita não se sentir com forças. No meio do terraço, vários objectos, desde roupas, mobílias e imagens religiosas. Olhando para as peças, questiona-se: «os meus santos ficaram todos intactos, porque não ficaram as minhas coisas?»




Jornal da Madeira

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