domingo, 4 de abril de 2010

Santos da casa







São nove santos, salvos no início do século XX dos escombros do Convento de São Bernardino, que todos os anos deixam as casas das famílias que lhe dão guarida para participar na Procissão das Cinzas, em Santa Cecília

A Procissão das Cinzas, que se realiza na quarta-feira seguinte ao Carnaval e que marca o início do período da Quaresma, é seguramente o momento religioso mais importante para grande parte dos paroquianos de Santa Cecília, em Câmara de Lobos. É nesse dia que as nove imagens dos santos, resgatadas no início do século XX das ruínas do Convento de São Bernardino, deixam as casas das famílias que lhes deram abrigo e voltam a sair à rua para cumprir uma tradição secular que é caso único na Madeira.

A memória colectiva local diz que as imagens foram recolhidas pelas famílias entre 1916 e 1917, na sequência do abandono do convento por parte dos franciscanos e da degradação gradual que o edifício foi, posteriormente, apresentando. Um incêndio que, entretanto, terá deflagrado no vetusto convento precipitou a decisão dos paroquianos em retirarem as imagens dos santos e guardá-las nas suas casas. O padre Francisco Caldeira, pároco de Santa Cecília, lembra que esta procissão "iminentemente penitencial, de apelo à conversão, à renovação e à transformação de vida" e que vai de encontro à própria espiritualidade franciscana, já se realizava durante o século XIX no Funchal, então com saída do Convento de São Francisco (na zona onde hoje existe a Madeira Wine e o Jardim Municipal) e percorrendo várias ruas da cidade.

Foi no final do século XIX, já depois de ter passado pela Igreja do Colégio, que os santos foram transferidos para o Convento de São Bernardino, o derradeiro edifício dos franciscanos que ainda se mantinha de pé na Madeira. Terá sido por esse altura que a Procissão das Cinzas se transferiu também para Câmara de Lobos, saindo do referido convento e, durante os primeiros anos, cumprindo um percurso que a levava até ao centro da vila câmara-lobense. De resto, no próprio DIÁRIO de Notícias de 27 de Fevereiro de 1900 é noticiada a realização desta procissão.

De acordo com o padre Francisco Caldeira, depois de uns longos anos de interregno motivado pelo período efervescente que se seguiu à implantação da República, a procissão voltou a sair à rua por alturas de 1925, já com os santos à guarda dos paroquianos.

O pároco reconhece que, mesmo nos dias de hoje, esta é uma tradição que as pessoas de Santa Cecília e também de outros sítios do concelho, "vivem com grande intensidade". De tal forma que, recorda, uma sua proposta de alterar a data de realização da procissão para o domingo seguinte à Quarta-feira de Cinzas, por forma a permitir a vinda de mais forasteiros, foi liminarmente rejeitada pelos fiéis. "As pessoas fazem questão de manter a tradição naquele dia, também por uma questão de memória pelos antepassados e por isso organizam a sua vida para poderem estar presentes na procissão", expressa, acrescentando que este marco religioso, em tempo de preparação para a Páscoa, é também encarado com um espaço privilegiado para "reflexão, meditação e formação".

O padre Francisco Caldeira realça "o grande apreço e carinho que as famílias têm pelos seus santos", preservando-os com "uma grande dedicação e cuidado", como se se tratasse de "uma relíquia dos seus antepassados". Há, de resto, o caso de um santo que mudou de uma família para outra, já que a geração terminava ali e os últimos descendentes do patriarca que havia recolhido a imagem faziam questão de assegurar a transmissão da herança ainda em vida.

Preservar de uma herança Na casa dos descendentes de José Figueira da Silva, conhecido pelo Glória, no sítio da Saraiva, há "um grande orgulho" em possuir as imagens de São Francisco de Assis e de Jesus Cristo, que têm a particularidade de saíram abraçados na procissão. "É já uma herança de família, dá-nos uma grande alegria ter os santos em casa", refere Filomena Silva, dando conta "da grande fé e devoção" que a família mantém pelos seus santos. O filho fez mesmo questão de construir um armário embutido na parede de um dos quartos, onde estão cuidadosamente guardadas as duas imagens.

Depois, há todo ambiente de festa que antecede a preparação da procissão, nomeadamente com a compra das flores que vão embelezar o andor e todo o trabalho de preparação, que envolve várias gerações, dos avós aos mais pequenos. Nesta família, tal como na grande maioria das outras, procura-se que sejam os membros da família a transportarem o andor com os santos. No entanto, até por uma questão das estaturas das pessoas, muitas vezes é necessário recorrer a amigos e vizinhos.

Santa atravessa gerações Há 15 anos que a imagem de Santa Isabel de Portugal está na casa de Élvio e Fátima Quintal. Que fazem questão de mantê-la permanentemente na sala de estar. "Antes era guardada numa caixa, mas achámos que assim tinha outra dignidade", explica Fátima. A santa está na família Quintal desde que foi resgatada do convento por António Figueira Quintal, já lá vão algumas gerações: esteve à guarda das tias avós de Élvio, depois do seu pai e agora está em sua casa.

Ao longo destes anos, o restauro resumiu-se à substituição do fato, há dois anos, e à limpeza de algumas pequenas peças. Porque a imagem não tem necessitado de grandes trabalhos de restauro. De resto, umas das particularidade da Santa Isabel de Portugal, tal como de alguns outros santos, é que assentam em armações de madeira - um método muito utilizado antigamente na concepção de imagens religiosas.

A quarta-feira de cinzas já está padronizada como sendo um dia de reunião familiar. "Apesar de muitos trabalharem nesse dia, os que podem vêm sempre cá a casa ou vão à igreja", explica Fátima Quintal, acrescentando que no final da procissão, quando é tempo de desmontar o andor, os familiares fazem questão de levar algumas das rosas para casa. Uma forma de partilha de fé e ao mesmo tempo de homenagem aos antepassados que estiveram na base desta tradição.

São Benedito que foi Santo António As irmãs Fátima e Isabel Dinis, herdeiras da família Pita, nem querem ouvir falar da hipótese de, futuramente, os santos poderem retornar ao convento. Há cerca de 60 anos que São Benedito - o santo negro de ascendência etíope, mas nascido na Sicília - está na família, embora anteriormente tenha passado por uma outra habitação na zona da Boa Hora, à guarda de uma senhora. "Os santos já fazem parte das famílias", assinala Isabel Dinis. A irmã vai mais longe e sentencia: "Os mais novos já sabem que quando nós morrermos o santa é para ficar na família!" Curiosamente, no início São Benedito era conhecido entre os câmara-lobenses como Santo António de Noto. De resto, Fátima Dinis ainda não está totalmente convencida da mudança da designação do santo, feita com base em investigações históricas. "A minha irmã que está na Venezuela diz que o São Benedito tem um Menino Jesus nas mãos", refere.

Independentemente disso, o que fica mesmo registado é "a grande fé e a devoção que temos ao santo", regista Isabel Dinis. E é a ele que recorrem nos momentos de aflição.

Projecto de recuperação do convento









O Convento de São Bernardino apresenta-se, actualmente, bastante degradado, mas existe já um projecto, da autoria do arquitecto Victor Mestre, com vista à sua restauração. Só que, por enquanto, tem tardado a avançar.

O próprio padre Francisco Caldeira tem dado alguns passos no sentido de que se proceda à recuperação daquele importante património histórico, tendo inclusivamente já mantido uma reunião com o conhecido padre Victor Melícias, prior geral dos Franciscanos.



"O padre Victor Melícias tem assumido a peito o projecto de recuperação deste convento", adianta o pároco de Santa Cecília, lembrando que este é um dos poucos vestígios que ainda se mantêm de pé da passagem da Ordem dos Franciscanos pela Região. "O que resta dos franciscanos na Madeira é o Convento de Santa Clara e isto aqui", reforça, acrescentando que, entretanto, se perderam os edifícios da congregação que existiam em Santa Cruz, na Calheta e no Funchal.

Os santos

São Francisco de Assis (italiano, século XII) -
O santo amigo dos pobres e da natureza, chamava todos os seres vivos por irmãos. Grande amigo de Jesus pobre e humilde. Construiu pela primeira vez um presépio. Padroeiro dos ecologistas e das sociedades protectoras dos animais. Há duas imagens deste santo. Dia: 4 de Outubro.

Santa Margarida de Cortona (italiana, século XIII) - Depois de uma vida dissoluta e sem ideais, nem compromissos, tornou-se uma grande amiga de Jesus e dos irmãos, com uma vida austera, disciplinada e comprometida com a causa do Evangelho. Dia: 17 de Maio.

São Roque (francês, século XIV) - O grande apóstolo e amigo dos leprosos. Tornou-se enfermeiro e depois médico para gratuitamente curar doentes. Grande profeta da solidariedade para com os desprezados, amigos dos leprosos e de todos os doentes. Defensor das pessoas com peste e contaminações. Dia: 16 de Agosto.

Santa Rosa Viterbo (italiana, século XIII) - Pertenceu à ordem terceira franciscana e depois fez-se religiosa. Uma grande missionária e evnagelizadora das crianças e adolescentes. Dia: 4 de Setembro.

São Benedito (de ascendência etíope, século XVI) - Seus pais eram de ascendência etíope, mas nasceu na Sicília. Foi um homem de grande bondade, espírito de serviço e de entreajuda, simples e afável. Muito venerado na comunidade negra no Brasil. Dia: 5 de Outubro.

Santo Ivo (francês, século XII) - Homem da justiça e do direito. Defensor das causas judiciais dos mais necessitados. Padroeiro dos juristas. Dia: 19 de Maio.

Santa Isabel de Portugal (portuguesa, século XIII) - Esposa de D. Dinis. Uma mulher com um grande coração para com os mais pobres, os doentes e os miseráveis. Apóstola da caridade e da partilha. Dia: 4 de Julho.

São Salvador - O Santo Salvador é Jesus Cristo, o Salvador. Dia: todos.

Nota: dados fornecidos pela paróquia de Santa Cecília.


DN Madeira

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