sábado, 12 de junho de 2010

Madeira perde uma grande dinamizadora cultural


Maria Aurora morreu ontem aos 72 anos. e deixa a cultura de luto na região e não só





Aurora Augusta Carvalho Homem, conhecida por milhares de pessoas como Maria Aurora, inquestionavelmente uma das personagens mais populares do arquipélago, morreu ontem no Hospital do Funchal, após um longo combate com uma doença prolongada. O cancro e toda uma série de outras complicações paralelas obrigaram-na a sujeitar-se a um autêntico calvário de tratamentos e intervenções cirúrgicas. Mas, ao longo de todo este doloroso processo, Maria Aurora demonstrou sempre uma coragem inquebrantável, uma resistência a toda a prova, física e psicológica, e uma alegria de viver que a mantinham sempre em actividade, mesmo que sujeita a limitações. Ainda há dias esteve envolvida nos processos de funcionamento do Prémio Literário Edmundo Bettencourt, e apresentou na Feira do Livro o seu mais recente conto para crianças, 'Marta, Xispas e a Gruta Misteriosa', aproveitando para criticar o actual modelo do certame, com a frontalidade que sempre lhe foi característica, por, em seu entender, faltar ao mesmo a realização de colóquios que juntassem escritores madeirenses em diálogo como autores das Canárias, Açores, Cabo Verde, Portugal continental e mesmo outros países - colóquios esses que movimentou ao longo de anos e que trouxeram à Madeira muitos e bons escritores, desde José Saramago a Baptista-Bastos, desde Inês Pedrosa a Enrique Villa-Matas, Onésimo Teotónio de Almeida e Vasco Graça Moura, entre muitos outros.
A doença pode ter-nos privado do seu convívio físico, mas permanecerá, sem dúvida, a memória indelével de uma mulher 'a sério', defensora intransigente da Cultura, desde as manifestações mais eruditas às de cariz etnográfico, que sempre pugnou pela qualidade, pela liberdade de expressão e pela crítica do que é bom e do que é mau, do que merece a dignidade da publicação e da atenção pública e do que não o merece. Uma das poucas vozes 'sem papas na língua' num meio muitas vezes fortemente condicionado.

De si própria, dizia não ser escritora, apenas "escrevinhadora". Não embandeirava em arco, ao contrário de alguns, embora fosse dona de uma personalidade desempoeirada, que se sentia plenamente à vontade com a exposição pública. Muitos madeirenses, e não só, conhecem-na pela sua actividade de apresentadora de televisão na RTP, onde apresentou programas culturais como 'Letra Dura & Arte Fina', ou de cariz mais etnográfico e popular, entre os quais 'Atlântida' e 'Cá Nada' (dedicado a expressões populares madeirenses) entre vários outros. Também foi autora de teledramáticos para a RTP. Apesar da sua modéstia em relação à escrita, tornou-se bastante popular no campo da literatura infantil, obtendo os seus livros o reconhecimento do público e de editoras continentais como a '7 Dias, 6 Noites', que os divulgaram por todo o país. Na área do conto e da poesia, publicou obras como 'A Santa do Calhau', 'Para Ouvir Albinoni', 'Leila', 'Antes Que a Noite Caia', 'Discurso Amoroso', 'Cintilações', 'Raízes do Silêncio', 'Ilha a Duas Vozes', 'Uma Voz de Muda Espera', entre outros. Foi jornalista do Diário de Lisboa e de 'A Capital', assessora da Câmara Municipal do Funchal, onde desenvolveu uma ampla actividade como dinamizadora cultural, movimentando a Feira do Livro durante anos e dando-lhe uma dinâmica cultural memorável, inclusive com colóquios internacionais. Foi editora da revista 'Margem', da CMF, cronista na imprensa (inclusive neste DIÁRIO)... O meio cultural madeirense ressentir-se-á fortemente da sua perda.

Reacções: muita mágoa pela partida de uma mulher de personalidade única

Natural de Sátão, perto de Viseu, na Beira Alta, Maria Aurora veio viver para a Madeira em 1974. Tornou-se uma das figuras mais populares e acarinhadas por madeirenses e não só. Vários vultos da Cultura lamentaram ontem a sua perda. O escritor José Viale Moutinho deixou-nos este testemunho: "A morte da Maria Aurora é uma perda cruel para os seus familiares e amigos, e entre estes me incluo há mais de 40 anos. Porém, a Madeira também fica sem uma das suas mais dinâmicas personalidades no campo da divulgação cultural e turística. Enquanto escritora, deu a conhecer às novas gerações as tradições do arquipélago e é uma referência de bem escrever usando o cenário da Região; enquanto jornalista de televisão, foi autora de programas de grande importância numa atenção continuada para a identidade cultural madeirense. Acontecendo o seu desaparecimento pouco depois ao de José António Gonçalves, é mais um doloroso golpe na Cultura Regional. O luto é imenso".

Por seu turno, o secretário regional da Educação e Cultura, Francisco Fernandes, referiu: "Uma primeira palavra para os filhos, netos e amigos mais íntimos os quais, acima de todos os demais, sentirão a sua ausência. A Maria Aurora deixa-nos uma marca que influenciou muitos projectos culturais, entre os quais destaco os que procuraram garantir a preservação da cultura e das tradições madeirenses e porto-santenses. Do ponto de vista pessoal, fico a dever-lhe o estímulo que várias vezes me dedicou, impelindo-me para a aventura da escrita". Palavras que vêm somar-se às de João Henrique Silva, director regional dos Assuntos Culturais, que, em declarações à rádio TSF, a recordou como uma pessoa empenhada, solidária, humana, uma cidadã activa e única naquilo que fazia. O edil funchalense, Miguel Albuquerque, referiu ontem uma possível homenagem da CMF, sem especificar quando nem como. Também o escritor Octaviano Correia a considerou "uma figura que levou o nome da ilha da Madeira, dos escritores, o nome da literatura madeirense, para além das fronteiras do mar". Com a notícia publicada na nossa edição on-line, multiplicaram-se os comentários: entre outros, o historiador Nelson Veríssimo disse ter perdido uma amiga e companheira: "O muito que com ela aprendi, em mais de trinta anos de convívio, ficará para sempre com eterna gratidão. A Cultura perdeu uma grande Mulher. Mas a sua obra permanecerá".

O académico Thierry Santos elogiou a sua dedicação à causa da Cultura Madeirense, o seu gosto pela Literatura Portuguesa, pelo património cultural e linguístico (...) a dinamização de projectos culturais e editoriais a pensar no público conquistado e naquele por conquistar (...)". E sublinhou a "lição de vida" que nos deixa. Para a autora Irene Lucília, "O tempo não conta perante a eternidade. E as amigas não morrem. Mudam de vida".

Homenagem: escritores e amigos não escondem tristeza

O poeta José Agostinho Baptista enviou-nos, de Lisboa, estas palavras: "Se houve amigos de verdade neste mundo, constantes, leais, generosos, disponíveis, Maria Aurora foi um deles, ocupando um lugar de eleição num rol muito curto na minha vida. É sobretudo a ela que devo o reconhecimento literário que nos últimos anos a Madeira me concedeu. É sobretudo a ela que a Madeira deve a descoberta, a dinamização e a projecção cultural dos seus autores, e não só. É um imenso lugar vazio e doloroso aquele que a sua partida nos deixa. Ela era uma voz sonora e vibrante, um coração aberto às sentidas expressões da vida, uma segunda mãe, sempre protectora e atenta, sempre despojada de artifícios e astúcias. Uma perda irreparável que torna ainda mais tristes estes dias sem alegria. Já nada será como antes. Ficámos mais pobres, a Madeira e eu, e outros tantos que se habituaram a trazê-la muito junto a si. Mas acredito, quero acreditar, que para onde partiu haverá uma luz muito intensa à sua volta, uma casa de ternura, uma árvore frondosa que nunca deixará de oferecer os frutos antigos de um afecto mais puro. Que brilhes sempre, minha amiga, com as tuas palavras sábias, com as tuas mãos de dádiva e oferenda, com tua pródiga e desinteressada companhia. Um último e saudoso abraço do teu grande amigo, José Agostinho. Obrigado por tudo".

Já o escritor e jornalista Baptista-Bastos recordou os tempos em que Aurora era redactora do Diário de Lisboa. "Além de ser exuberante e afirmativa, inspirava grande respeito, sobretudo naquela época, em que era muito raro haver mulheres nos jornais... Impunha-se pela sua capacidade de afirmação pessoal e profissional. Era muito engraçada, contava muitas histórias. Fazia parte de uma tertúlia onde participava gente admirável, como o Luís de Sttau Monteiro, o cronista Pedro Alvim... Era um grupo que se encontrava no Bairro Alto, escritores, pintores, cineastas... A Maria Aurora era uma mulher muito vistosa, que regalava os olhos".
Anos mais tarde, Baptista-Bastos reencontrá-la-ia aquando das Feiras do Livro do Funchal, "que ela organizava com um mérito extraordinário. Tenho muita pena que ela tenha morrido", disse.

Comunidades

Venezuela


Antonino Ascensão de Ponte, representante da Academia do Bacalhau de Caracas: "Não há outra pessoa que significasse tanto. Ela era a Ilha da Madeira. Foi uma grande professora, jornalista e escritora."
António Gouveia, Presidente do Centro Português, de Caracas (CPC): "Uma grande perda, não só para os madeirenses mas para todos os portugueses. Era uma pessoa emblemática que dedicou parte da sua vida a informar as comunidades e era muito querida por todos".
Andrés Pita, ex-presidente do CPC: "É uma notícia muito triste. Todos lamentam a sua perda. Quero, sobretudo, endereçar palavras de alento aos seus filhos. Aurora levou felicidade a muitos lusos."
Aleixo Vieira, Director do Correio da Venezuela: "Maria Aurora converteu-se num dos expoentes máximos da cultura lusitana. É um exemplo a seguir e espero que o seu legado seja transmitido às gerações futuras."


África do Sul


Sofia Câmara, na Cidade do Cabo, disse: "Fiquei transtornada quando as minhas primas me telefonaram do Funchal para me dar a notícia. Suspeitava que algo não corria bem, pois a ausência contínua de alguns programas me fizeram pensar".
Ivo de Sousa, em Pretória, também referiu: "A morte de Maria Aurora, representa para mim e minha mulher, como se da morte de um familiar se tratasse. É uma perda irreparável para nós todos não só madeirenses como portugueses geral.
Matilde de Abreu, em Joanesburgo, frisou: "Foi com muita mágoa que tomei conhecimento do seu falecimento. A sua morte é também a do programa que era uma janela da Madeira para os emigrantes.
Elias de Sousa, Cônsul Honorário português em Durban, acrescentou: "Primeiro é uma perda para a RTP Internacional, para as comunidades. Foi uma referência. Prezo-me de ter sido seu amigo. A sua morte consternou-nos profundamente."


Reino Unido

Natural do Caniçal, Duarte Aveiro vive em Jersey e realçou a perda de uma excelente comunicadora: "Foi um vector de promoção e divulgação da Madeira, deu-nos momentos muito felizes e irá ficar uma eterna saudade. Estou muito grato pelo seu profissionalismo".
O conselheiro da Madeira no Reino Unido, Carlos Freitas, afirmou que Aurora foi uma embaixadora da Madeira em todo o Mundo. "Estivemos juntos em várias ocasiões, e até houve um programa feito em Londres. Não há pessoas insubstituíveis, mas vai fazer muita falta. Não sendo madeirense, tinha um grande amor pela Madeira".
Felisberto Serrão, natural do Funchal, que vive em Londres há mais de duas décadas, foi apanhado de surpresa: "A RTP-M está mais pobre, era um espectador assíduo do programa 'Atlântida'. Nunca será esquecida, sobretudo pelos madeirenses espalhados pelo Mundo. Era como se fosse da família".


Opinião: Maria Aurora

Além de grande amiga, foi uma personalidade muito marcante na vida social e cultural
A Maria Aurora, para além de uma grande amiga, foi uma personalidade muito marcante na vida social e cultural madeirense.
Beirã de nascimento, cedo se mudou para a ilha, participando vivamente nos acontecimentos sociais e culturais da Cidade do Funchal. Através da sua personalidade fortemente carismática, interferiu activa e vivamente nas questões culturais deste concelho, tornando-se numa espécie de símbolo nas actividades culturais, sobretudo no que respeita à área da Literatura.

Foi uma forte dinamizadora da 'Feira do Livro', bem como da Revista Margem e do Prémio Edmundo Bettencourt, acções que desenvolveu em colaboração com a Câmara Municipal do Funchal. O seu papel na comunicação social foi também fortemente activo, através de programas que dinamizavam a cultura, como o 'Letra Dura e Arte Fina'. Ainda nesta área, há que referir a sua participação no programa televisivo 'Atlântida', que fez dela um ícone também nas comunidades de emigrantes madeirenses.

A perda de Maria Aurora é um golpe para esta Cidade. Pelo seu carisma e pela sua figura, pelo modo emocional como se relacionava com as pessoas, mas também pela sua obra literária, que a fará prevalecer no imaginário da Cidade.
A Cultura e o Conhecimento como alicerces fundamentais do verdadeiro desenvolvimento das pessoas e das comunidades. Eis o seu legado e o seu exemplo de Mulher
livre e cosmopolita.
Até sempre, querida Amiga.
Miguel Albuquerque


DN Madeira

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