Veitch foi uma figura pendular na Madeira do início do século XIX, defensor da paz e da harmonia política e social. Num tempo de conflitos múltiplos, nacionais e internacionais, revelou-se, inclusive, um apoiante da autonomia.
Data: 02-08-2009
Henry Veitch nasceu em Selkirk (Escócia), a 2 de Julho de 1782 e foi um dos mais importantes e influentes cônsules britânicos na Madeira. Começou por ser assistente nos consulados de Charles Murray e Joseph Pringle, entre 1799 e 1809, ano em que substituiu o último. Assumiu então as funções de cônsul-geral e agente britânico, por nomeação de Jorge III, exercendo o cargo, de forma ininterrupta, durante as duas décadas seguintes. Para a sua nomeação contribuíram os apoios que conquistou junto do 'Foreign Office' e o facto de ser sócio da Firma 'Scott Pringle & Cª' (mais tarde Scott, Longhnan, Penfold & Veitch), de onde já tinham saído outros cônsules. Assim, para além da intervenção de J. Pringle, Veitch contou, em Londres, com o apoio Spencer Perceval, futuro primeiro-ministro, e do seu secretário, George Harrisson, de quem era cunhado. Contudo, só a intervenção de Henry Dundas, Visconde de Melville, se revelou fundamental para convencer o ministro dos negócios estrangeiros, George Canning, a nomeá-lo. Uma vez em funções, tudo indica que só passados doze anos, em 1821, solicitou a primeira autorização para se deslocar à Grã-Bretanha, a fim de tratar de assuntos particulares.
Em 1828, e no decurso da guerra civil em Portugal, Veitch recebeu ordens de Londres para suspender funções, depois de ter sido acusado pelos miguelistas, que entretanto tinham conquistado a Ilha, de estar a apoiar e a proteger os liberais. Já então era o decano dos cônsules britânicos no mundo e nunca escondera a sua simpatia, primeiro pelos 'vintistas' (liberais radicais, de quem depois se afastou) e mais tarde pelos 'cartistas' (liberais moderados, com os quais melhor se identificou). A este respeito, as acusações de que foi alvo tinham fundamento, até porque, em várias ocasiões, foram visíveis do exterior das suas casas no Funchal, nomeadamente aquela onde hoje se situa o Instituto do Vinho e do Bordado, alguns dos seus 'hóspedes', chegando mesmo esses edifícios a ser apedrejados em consequência da protecção aí concedida aos liberais.
Mas se tinham sido as simpatias políticas do cônsul a impor a sua retirada da cena política madeirense, também foram estas que promoveram o seu regresso, em Fevereiro de 1832, numa conjuntura em que ao governo britânico já pouco interessava a manutenção de D. Miguel em Lisboa. Claro que, para além disto, em Londres, também já se percebera que era praticamente impossível os absolutistas conservarem o poder por muito mais tempo. Uma vez mais, numa fase de transição e de conflito na política e na sociedade portuguesas, Veitch voltou ao serviço (do qual, aliás, nunca fora totalmente afastado), para cumprir, durante quatro anos, até 1836, aquele que seria o seu último exercício consular.
Só neste ano foi definitivamente demitido do cargo, em parte devido às inimizades que entretanto gerara (na Ilha e fora dela), mas também por causa dos conflitos e das rivalidades em que se envolvera no seio da comunidade britânica, um corpo muito mais complexo do que vulgarmente se pensa, mas no qual, até aos anos 1830, Veitch sempre conseguira exercer a sua reconhecida capacidade para harmonizar diferenças de carácter religioso, político e de identidade nacional. Este fora sempre, aliás, um dos seus maiores trunfos.
Assim, a partir do momento em que deixou de funcionar como elemento aglutinador dessa comunidade, viu desvanecer grande parte do interesse e do crédito que sucessivos governos britânicos lhe haviam reconhecido. Neste quadro, acabou por ser afastado não por qualquer sugestão do governo português, mas devido a jogos de poder e de influência no seio da sua própria comunidade, na qual se sentiu cada vez mais desajustado.
A isto dever-se-ão juntar, ainda para explicar o seu afastamento, as crescentes disputas em que se envolveu com alguns dos seus superiores, no ministério dos negócios estrangeiros britânico, em particular após 1825, quer por se sentir afectado pelas reformas administrativas que então se inauguraram nos serviços consulares, quer por discordar de algumas das políticas seguidas ora pelo Gabinete, ora pelos poderes instituídos em Lisboa ou, até 1821, no Rio de Janeiro. No primeiro caso, viu desaparecer parte da sua autonomia política e assistiu à redução dos seus rendimentos consulares. No segundo, foi por diversas vezes evidente a sua discordância em relação a algumas opções seguidas por Londres, quanto à inserção da Madeira nos impérios britânico e português. A este respeito, foi frequente pautar a sua atitude pela defesa dos interesses insulares madeirenses e sua especificidade, o que muitas vezes o levou ao choque tanto com os poderes instalados em Inglaterra, como com aqueles que se encontravam em Portugal ou no Brasil.
Verificamos, assim, que foi na Madeira que Veitch passou a maior parte da sua vida (mais de 70% da sua vida total, ou acima dos 95%, se considerarmos apenas a sua vida adulta), circulando pelas suas propriedades, entre as quais se podem destacar as actuais Quinta Calaça, o Instituto do Vinho e a sempre muito citada Quinta do Jardim da Serra, autêntico retiro romântico. Homem de forte personalidade e de muitos inimigos (entre nacionais e estrangeiros), teve uma vida privada algo atribulada, a respeito da qual ainda hoje se especula. Para isto, muito terá contribuiu o seu feitio austero e, a partir de certa altura, o seu afastamento ou ausência das reuniões e festividades comunitárias, sem esquecer o seu pendor liberal, associado à circunstância de ter exercido funções consulares durante um período muito atribulado do ponto de vista político, caracterizado por conflitos intensos e de vária ordem.
Nesta perspectiva, o consulado de Veitch pode dividir-se em quatro períodos: 1. o inicial (1809-1815), que coincidiu com as Guerras Napoleónicas, período áureo da História da Madeira, que criou novos paradigmas nas relações entre a Ilha e os espaços exteriores; 2. o intermédio (1816-1822), que desenvolve o anterior, abrangendo a instituição do Reino Unido de Portugal e do Brasil, as suas implicações institucionais e políticas e a emergência do primeiro liberalismo português; 3. o terceiro período (1823-1832), que engloba o envolvimento do cônsul nas tentativas de definição do modelo liberal português e nos diversos conflitos que então se geraram, inclusive os primeiros anos de guerra civil; 4. o período final (1832-1836), que corresponde ao desfecho da guerra e à transição de poderes na Ilha, com a saída dos miguelistas e o regresso dos liberais, na qual Veitch participou directamente.
Em qualquer destes períodos, existiu um denominador comum: o esforço constante do cônsul para garantir a paz interna e assegurar transições de poder pacíficas, em particular após os anos 20, quando o país mergulhou num verdadeiro turbilhão político que iria marcar as gerações seguintes. No extremo, foi Veitch quem impediu que a guerra civil se estendesse, de forma sangrenta, à Madeira, assim como evitou que se tivessem desenvolvido internamente focos de conflito armado relevantes. Mas não só.
Na verdade, continua a ser desconhecido por muitos que no início do século XIX a Madeira esteve, em diferentes momentos, perante quatro hipóteses: a) a 'adjacência' ao Brasil, onde, até 1821, esteve a Coroa; b) a independência pura e simples, só possível com o apoio britânico; c) a 'adjacência' ao Reino (de Portugal), na sequência da revolta liberal; d) a inserção no império britânico, embora neste caso nunca se tivesse definido, de forma clara, os termos em que tal se poderia verificar.
Ora, como facilmente se deduz - e não poderia ser de outra forma -, os britânicos estiveram envolvidos na definição do caminho a seguir e Veitch participou, directa e indirectamente neste processo, sustentando reivindicações e decisões, pacificando disputas e até coordenando acções.
Na prática, isto significa que se é certo que o governo britânico, através do seu cônsul, contribuiu, por um lado, para o não desenvolvimento da ideia independentista (por motivos que aqui não cabe desenvolver), não é menos verdade que também sustentou as reivindicações autonomistas do poder insular. Não porque gostasse mais ou menos dos madeirenses, mas apenas porque quanto maior fosse o grau de autonomia dos poderes insulares, menor era a necessidade dos interesses britânicos no espaço atlântico madeirense - e na própria Ilha - ficarem dependentes das flutuações do poder central, em Lisboa.
Ou seja, a opção - inédita e artificial - pela 'adjacência' ao Reino, expressa pela primeira vez na 'Constituição de 1822', contou com a anuência britânica e teve em Veitch uma pedra-de-toque. O cônsul desempenhou um papel essencial na construção deste novo paradigma, da mesma forma que já o tivera na afirmação da ideia de autonomia, que se desenvolvera até ao início dos anos 20, de forma relativamente pacífica, graças a uma conjuntura internacional favorável aos interesses madeirenses, quer pelas profundas mudanças que então se verificavam no mundo atlântico e ibero-americano, quer pelo fraccionamento do poder da Coroa e do Estado portugueses.
Neste sentido, a defesa dos interesses madeirenses por parte de Veitch (os quais, note-se, não eram necessariamente coincidentes com os interesses britânicos ou sequer com os dos portugueses do Reino) vai destacar-se, pela sua maior premência, a partir da revolução liberal, desde logo porque esta, no caso português, significou, antes de mais, um processo de centralização do poder, contra o qual, a partir da Madeira, muitos se manifestaram.
Daí a multiplicação dos focos de conflito que se começaram a verificar entre o cônsul e o poder liberal instituído em Lisboa, tanto Veitch defender, em abstracto, a necessidade de se promover a autonomia insular, como por apoiar um conjunto de propostas, apresentadas pelos poderes insulares, de defesa dos interesses madeirenses. Entre elas, podem destacar-se, por exemplo, a liberalização do mercado (com a excepção do comércio dos vinhos), a redução das taxas e dos impostos aduaneiros e a criação de um porto franco.
A partir de meados dos anos 20, Veitch passou a contar com a assistência do seu primogénito, Robert Harrisson, no consulado, mas a morte inesperada deste, numa deslocação a Inglaterra, em Outubro de 1833, abalou-o de sobremaneira, tanto física, como financeiramente, pelas dívidas do filho que teve de assumir. Para o substituir ainda se serviu de outro dos seus filhos, George Waterloo (assim chamado por ter nascido em 1815). Porém, se até então Veitch fora um homem frio, amargo e ressentido, cada vez mais sozinho, aquela perda e as disputas de poder intestinas, contribuíram para que se afastasse, cada vez mais, do meio social onde preponderara durante quase três décadas.
A partir de meados dos anos 30 começou a queixar-se de problemas de saúde graves e crónicos, servindo isto para induzir também à necessidade do seu afastamento. Uma vez demitido das actividades consulares, ficou a receber uma pensão e, até à sua morte, só por uma vez voltou a estar presente nas reuniões gerais da comunidade britânica. De resto, as suas aparições foram esporádicas.
Em 1837 surge como presidente da 'Sociedade das Corridas Funchalenses'. No início dos anos 40 é fortemente elogiado pela prestigiada revista 'O Panorama' e em 1844 chegou a oferecer um plano para a construção de um cais na baía do Funchal.
No fundo, seguido por uns e detestado por outros, acabou por se revelar, como ele próprio muitas vezes afirmou, um elemento essencial quer para a manutenção da harmonia no seio da multifacetada comunidade britânica local, quer para um relativo bom entendimento entre esta e a madeirense, durante mais de três décadas. Fê-lo quase sempre na defesa de interesses comuns, isto é, madeirenses. A demonstrá-lo, aliás, parecem estar as disputas que se deram após à sua retirada.
Acrescente-se, por último, que casou por duas vezes: a primeira com Margaret Antoinette Harrison, de quem ficou viúvo em Julho 1837; e a segunda com a madeirense Carolina Joaquina de Freitas. Teve vários filhos. Ainda a título de curiosidade, acrescente-se que foi o único residente na Ilha a cumprimentar Napoleão, quando este passou pela Baía do Funchal, a caminho do exílio.
Henry Veitch morreu na Madeira, a 7 de Agosto de 1857, aos 75 anos. Comemora-se agora o 152º aniversário da sua morte. Conhecê-lo é compreender uma parte significativa da História Contemporânea madeirense.
DN Madeira
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