quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Carnaval exigiu “um rasgo de loucura“

Segundo João Carlos Abreu, «o Carnaval foi a grande base para partirmos para outra animação na Madeira», como a Festa da Flor ou a Festa do Vinho






JORNAL da MADEIRA — É considerado um dos grandes impulsionadores do Carnaval, tal como o conhecemos hoje. Recorda-se de como foram esse primeiros passos do Carnaval?
João Carlos Abreu — Sim. Na altura, o que eu fiz foi trazer o Carnaval dos hotéis para a rua. Os carnavais que havia, antigamente, não tinham — digamos — este rasgo de loucura que era preciso ter para trazer o Carnaval dos hotéis para a rua.

JM — Como é que isso aconteceu?
JCA — Eu, nessa época, era o relações públicas do Hotel Sheraton e, quando fui chamado, naquela altura, para vir para o Governo, para o cargo de director de Animação e Turismo, eu disse que o Carnaval vinha para a rua no ano seguinte. E foi o que aconteceu. Na altura, disse isto à dona Ariete Sousa, que disse que isso não ia ser possível. Mas, eu empenhei-me em fazer isso. E não desisti.

JM — Isso quer dizer que havia algumas resistências?
JCA — Sim. Na altura, dizia-se que os madeirenses eram muito fechados. E a intenção de trazer o Carnaval para a rua era, precisamente, para tornar os madeirenses menos ilhas. E assim foi. Havia já alguns grupos com estruturas criadas. Era o grupo do Artur e a Dina, o grupo da dona Ângela Figueira, depois veio a dona Flávia, Alice Rodrigues. Enfim, essas pessoas foram, de facto, os grande pilares deste Carnaval, porque compreenderam qual era a ideia. Não era fazer um Carnaval qualquer. Era um Carnaval mais extrovertido, para contrariar aquela tendência do madeirense voltado para dentro. No fundo, entre os objectivos que estavam subjacentes ao Carnaval estava a ideia de quebrar a barreira das idades. Quebrar a barreira dos elitismos: ali, toda a gente entrava, desde o sapateiro ao advogado, passando pelo médico, pelo engenheiro, ou o governante. Toda a gente estava dentro de um projecto e o projecto era, no fundo, um fenómeno de ordem social.

JM — O que quer dizer com isso?
JCA — Com o Carnaval, acabou-se com o afastamento uns dos outros, a separação das classes sociais. Da mesma maneira que se afastou a barreira das idades, porque entravam os avós, entravam os filhos. Entrava toda a gente. Era toda a gente empenhada à volta do Carnaval. E este projecto iria tornar possível, depois, que se pudesse partir para novos eventos, como a Festa da Flora, ou a Festa do Vinho, a todas as outras iniciativas que, hoje, integram o calendário da animação na Região.

Muitas resistências para enfrentar

JM — Por falar nisso, houve, durante um certo tempo, alguma polémica em torno do Carnaval ser, ou não ser, um cartaz turístico. Não foi assim?
JCA — Nós não fizemos o Carnaval como um cartaz turístico. Havia muita gente que criticava o Carnaval e dizia que o Carnaval não era da Madeira. Mas, o Carnaval não é de sítio nenhum. Ainda ninguém me explicou de onde vem o Carnaval. A verdade é que o Carnaval tinha como função, justamente, despoletar outras acções que pudessem ser feitas em grupo, nos mesmos moldes. Na Madeira, não havia o hábito de fazer isso, eram as pessoas individuais. E, como nenhum homem pode ser uma ilha, e dentro de uma ilha muito menos. Era preciso criar esta perspectiva de colectividade, de envolvimento. Foi, de facto, um ponto de partida para outras iniciativas. E assim aconteceu. E assim foi o grande passo que demos. E, hoje, o Carnaval está bem estruturado nesse sentido.

JM — Está a referir-se, sobretudo, ao cortejo de sábado à noite. E o “Carnaval Trapalhão”?
JCA — O “Carnaval Trapalhão” surgiu um pouco mais tarde. Um ou dois anos depois. Na altura, com a colaboração da Dr.ª Manuela Aranha, demos mais esse passo.

JM —
Hoje, o Carnaval é assinalado um pouco por toda a Região...
JCA — Essa é outra perspectiva. Nós quando trouxemos este Carnaval para a rua, sabíamos que ele iria dar lugar ao Carnaval em todas as freguesias da Madeira. Porque é, de facto, uma festa abrangente. E depois, tudo aquilo que se faz com empenho, com entusiasmo, contagia toda a gente. E o objectivo era que “rebentassem”, também, outros carnavais na Região.

JM — Mas este não foi o primeiro Carnaval a vir para a rua...
JCA — Não. Já tinha havido o Carnaval da Rua da Carreira, com a farinha, com os tomates, o milho em grão e os ovos. Havia o Carnaval dos Jovens Cristãos. Mas não tinha nada a ver com este, com os objectivos deste. Objectivos que estavam definidos, embora não publicitados, e que conseguimos alcançar, tal como tínhamos previsto. E, hoje, o Carnaval tornou-se, de facto, num cartaz. Mas não foi criado como tal. Não nos podemos esquecer também que não podemos separar o Turismo, ou os turistas da população. Tudo aquilo que fazemos para a população o turista pode também participar, pode entrar. E assim aconteceu. Realmente, acho que o Carnaval foi a grande base para partirmos para outra animação na Madeira.

Foram os madeirenses os obreiros desta festa

JM — Mas havia algumas tradições do Carnaval. Estou a lembrar-me, por exemplo, dos “assaltos” a casas de amigos e familiares...
JCA — Sim, havia essa tradição muito interessante dos “assaltos”. Havia uma pessoa do grupo que combinava com o dono da casa que iríamos fazer um “assalto”. Às vezes, nem combinávamos e íamos de surpresa. O que também tinha a sua piada. Estávamos disfarçados até ao final da noite. Havia outros lugares públicos onde se faziam festas de Carnaval, como nos Bombeiros Voluntários Madeirenses, que estavam ali na Avenida do Mar, no Solar da Dona Mécia, nos Estudantes Pobres, Ateneu, enfim..., havia uma série de lugares onde havia Carnaval. Mas isso não tem nada a ver com o Carnaval que trouxemos para a rua em 1980. Esse Carnaval foi feito pelos madeirense. E os madeirenses foram inventando, foram criando e ninguém vem para aqui dizer que era assim, ou era assado. Não havia instrutores, porque não era necessário. Foram os madeirenses que idealizaram este Carnaval. Foram os madeirenses os construtores e ideólogos do seu próprio Carnaval. Mas, para esse Carnaval vir para a rua, tinha de haver loucura, caso contrário nunca teria vindo para a rua.

JM — Mas, na altura, não houve resistências, digamos assim, a esta mudança? Porque, no fundo, isto era algo de novo na Madeira?
JCA — É claro que houve algumas resistências. Apareciam as cartas anónimas. Vinham para a praça pública dizer que o Carnaval não era da Madeira e que era uma coisa para servir fins políticos. Isto era uma coisa que me dava vontade de rir, porque, no fundo, os objectivos estavam definidos e nós sabíamos que íamos conseguir alcançá-los e, por isso, não íamos parar nunca. E ainda bem que continuamos. Independentemente de ser uma festa, um divertimento, é também uma forma de dar azo ao próprio madeirense de imaginar, de criar, quer na parada de sábado, quer no “Carnaval Trapalhão”. É um espaço para a imaginação do madeirense. Ele necessita de exercitar a sua imaginação. E acho que isso foi conseguido.

JM — Houve essa estratégia do Governo, mas há também, aqui, o mérito dos muitos milhares de foliões que, ao longo destes 30 anos, têm vindo à rua...
JCA — Sem dúvida nenhuma. O Carnaval só existe porque estes grupos existem, porque há todas estas pessoas empenhadas. Porque toda esta gente tem orgulho naquilo que faz. E porque sabem também que o Carnaval é uma coisa importante para a Região. Há um conjunto de coisas aqui, que se conjugam e que fazem com que estes grupos continuem e estejam sempre com este entusiasmo e empenho. Depois, há também aquela competitividade, que eu considero salutar, entre os vários grupos. O que acaba por funcionar como mais um estímulo para o empenho.

JM — O que regista destes 30 anos de Carnaval, tal como ele é hoje?
JCA — Nestes 30 anos, primeiro que tudo, agradeço o facto de estar vivo para poder assistir a tudo isto. Por ter sido um dos obreiros deste Carnaval e poder, hoje, ver tudo isto. Por outro lado, estes 30 anos servem também para demonstrar a capacidade do madeirense e a preocupação de melhorar de ano para ano, até atingir o nível que nós temos hoje.

João Carlos Abreu diz que para trazer o Carnaval dos hotéis para a rua foi necessária «uma boa dose de loucura. Era algo totalmente diferente para a época».
Para o antigo secretário regional do Turismo e Cultura, outro dos aspectos de extrema importância para a dinamização deste Carnaval «foi o facto de alguns governantes terem aderido, terem participado. Eles tinham de dar o exemplo, não podiam ficar na varanda, como espectadores. E, para o nosso Carnaval, isso foi bastante importante. Porque, no fundo, serviu de exemplo, incentivou as pessoas a virem também para a rua».
Tal como afirmou, «não nos podemos esquecer que há 30 anos, a visão que as pessoas tinham era diferente. Embora ainda persista alguma mentalidade retrógrada, a verdade é que evoluímos muito. Há 30 anos, por exemplo, trazer as pessoas a mexer o corpo e divertir-se, não era fácil».



Jornal da Madeira

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